segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Noites de Inverno - Intruso, a não ser pela Parte que Me Toca (8)

Intruso, a não ser pela Parte que Me Toca

Absorto em pensamentos sobre aquela noite, eu me larguei em um banco do vagão de trem vazio e mal percebi as estações passarem. Eu percebi o quanto eu precisava daquilo, de um momento em que eu parei de pensar em tudo que eu havia feito, eu todos os meus remorsos e fantasmas, era somente eu e Meg ali, sem mais nada com o que se preocupar. Os gostos do brilho labial dela e do chiclete de menta que ela mascava continuavam em minha boca, e eu estava tão leve que pensei que fosse flutuar em alguns momentos.

Saí da estação e caminhei um pouco sobre a noite fresca e silenciosa.  As ruas do centro, hora tão agitadas naquelas noites quentes estavam anormalmente vazias, foi reconfortante, por alguma razão, poder ficar sozinho naquele instante, só depois eu entendi que eu não estava com meus pensamentos naquela hora e sim com as lembranças, boas lembranças, e essas sim eram boas companheiras.

Leco e Verônica estavam no sofá, aninhados um no outro quando cheguei ao apartamento. Assistiam a um filme qualquer na TV e eu tinha certeza que se perguntasse algo sobre o filme para eles não receberia resposta alguma.Mal perceberam quando cheguei.

– Onde estava? – perguntou Verônica, empurrando Leco um pouco para trás para que ele parasse de beijá-la. 

– Depois eu conto – respondi. Emendado um sorriso de canto de boca.

– Tem a ver com alguma garota?

– Pode-se dizer que sim – ela ficou satisfeita com a resposta. Leco limitou-se a rir, dela, de mim, ou dessa entranha relação que nos encontrávamos naquele apartamento.
 

Quem nos via naquele instante não diria que a situação poderia estar completamente invertida a alguns meses atrás. Muita coisa havia mudado desde que Verônica voltara, mas até ali eu não tinha parado para mensurar o quanto. Era bastante.

Absorto de mais de fazer qualquer outra coisa limitei-me a deitar e viajar nas lembranças das horas anteriores até pegar em um leve sono. Um sono despreocupado, sem consciência daquilo que estava por vir.

 Por volta do meio dia do domingo, enquanto eu preparava o almoço meu celular deu sinal de vida com uma chamada de um número que eu não conhecia.Atendi. Uma voz feminina alarmada passou a falar mais rápido do que eu conseguia entender no outro lado da linha.

– Por favor, me diz quem é você? – dizia a mulher.

– Moça, por favor, se acalme – pedi. – Eu te conheço?

– Não, não me conhece. Seu número está Aquino celular da minha irmã, eu não sabia para quem mais ligar. Você esteve com ela ontem? – A voz, em tom alto de estresse e raiva beirava o desespero. 

– Sim, estive com ela ontem a noite. – respondi sucinto – Aconteceu alguma coisa? – estava ficando mais preocupado a cada segundo naquela ligação.

– Sim! – gritou ela. Sua voz finalmente chegou ao desespero – Claro que sim! Minha irmã chegou em casa de madrugada, ferida e estuprada! Está quase catatônica! É suficiente para você? – e então o desespero dela passou a ser o meu.

Minhas pernas tremeram sobre o meu corpo receoso. Senti o gosto da bile que subiu imediatamente do meu estomago até a minha boca. A irmã de Meg, de quem até agora eu não sabia o nome, continuava a falar algo no telefone, mas agora eu já não estava exatamente prestando atenção. Meg havia sido estuprada, só isso ocupava minha mente.eu queria vê-la, queria saber como ela estava. Minha garganta se apertava em nós com um pensamento que começava a surgir como um terremoto na minha mente, começando ao poucos mais quando mais forte e presente mais me abalava. Eu a havia deixado sozinha. Eu poderia tê-la acompanhado até em casa, mas não o fiz. O arrependimento me acertou como um punhal afiado no abdômen.

Captei algumas palavras do que a irmã dela dizia entre o turbilhão de sentimentos – Eu vou ao hospital daqui a pouco! Encontre-me lá! Hospital Sta. Marina. Encontre o endereço! – e ela desligou o telefone.

Desliguei o as bocas do fogo com a destreza que me cabia e corri para o computador em busca do endereço. O encontrei sem dificuldades enquanto trocava de roupão mais rápido que podia. Meu corpo ainda tremia, mas eu precisava fazê-lo rápido. 

Dez minutos após a ligação eu estava entrando na estação. Havia deixado um bilhete sobre a mesa para Leco e Verônica e eu tinha certeza de que me ligariam assim que o lessem.

Cheguei ao hospital aos tropeços, correndo escada acima até chegar à recepção. Uma moça loira de dentes tortos me atendeu como se eu fosse a milionésima pessoa a importuná-la naquele dia.

– Por favor, - pedi ofegante – em que quarto está Melissa Monteiro? Sou amigo dela. Vim visitá-la. Meu nome é Vitório, Vitório Sodré.

A recepcionista me soltou um olhar de blasé, demonstrando total indiferença à minha aflição e pressa.

Uma voz conhecida a pouco soou intensa e fria às minhas costas, meu sangue, por um instante, apareceu aparar de correr nas veias. Encarar a irmã de Meg ali foi uma das coisas mais difíceis que já fiz até hoje.

– Olá, você deve ser o Vico como está na agenda do celular de minha irmã.

Cada palavra tinha em si contida um tiro de raiva, todos foram disparados contra mim, a queima roupa.

Limite-me a confirmar com a cabeça.

– Quarto 202, subida autorizada. – disse a recepcionista. Indiferente.   

– Obrigado – respondi por cima do ombro.

A irmã de Meg fez um sutil sinal com a cabeça em direção aos elevadores, foi o suficiente para me fazer seguia-la. A raiva que ela estava sentindo emanava do seu corpo com radiação, queimando e poluindo tudo ao seu redor. Se não fosse todo aquele sentimento que fazia minha garganta apertar em nó eu poderia ter dito a ela que compreendia sua raiva, afinal, eu a compartilhava, de uma forma ou de outra.

– Me chamo Ana, Ana Clara – disse ela bruscamente. Seu tom de voz, incrivelmente mais brando do que havia falando comigo na recepção fez parecer com que um muro houvesse se partido entre nós. Isso me fez a ver de uma forma diferente. Sem a agonia que a raiva dela me causava, pude vê-la com um pouco mais de compaixão. A dor dela pela irmã parecia palpitar. A ligação entre as duas era forte, era possível ver isso.

Ana Clara tinha muito da irmã, tirando os cabelos, que eram completamente diferentes. Poderia dizer que eram gêmeas se não fosse a sutil idade a mais que Ana tinha. Ainda era jovem, mas um ar de maturidade rondava seu cabelo castanho claro preso na parte de trás da cabeça por uma presilha delicada. Naquela tarde em especial parecia cansada. Deveria ter passado a noite toda acordada.
 

Saímos do elevador em silencio e percorremos o corredor de estremo branco até o quarto onde Meg deveria estar. A porta estava entreaberta.

– Espere aqui – disse Ana Clara, entrando no quarto e deixando à porta. Meu coração ribombava no peito, comprimindo meus pulmões e fazendo o respirar uma tarefa difícil. Foi a própria Ana Clara quem abriu a porta para mim, e só então eu pode ver o retrato de uma família despedaçada pela dor de uma filha. E eu estava ali, no meio de tudo aquilo.

 

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